MENINO
DE RUA
Fernando
Sabino
Eram dez e meia
da noite e eu ia saindo de casa quando o menino me abordou. Por um instante
pensei que pedia dinheiro. Cheguei a lhe estender uma nota de dez cruzeiros,
ele pareceu surpreendido mas aceitou. Usava uma camisa velha e esburacada do
Botafogo, o calção deixava à mostra as perninhas finas que mal se sustinham nos
pés descalços. Era moreno, com aquela tonalidade encardida que a pobreza tem.
Segurava uma pequena caixa de papelão já meio desmantelada.
- Que é mesmo
que você pediu? Não foi dinheiro?
- Uma coberta.
- Uma coberta?
Para quê?
- Pra eu
dormir.
Realmente
estava frio, mas onde ele queria que eu arranjasse uma coberta? O jeito era
voltar em casa, descobrir uma coberta velha, trazer para ele. Foi o que fiz:
apanhei uma colcha já usada mas ainda de serventia e lhe trouxe. Ele aceitou
com naturalidade, sem me olhar nos olhos. Não parecia ter mais de nove anos,
mas me disse que já tinha treze.
- Onde é que
você dorme?
- Num lugar ali
– e fez um gesto vago para os lados da praça General Osório.
- Dorme sempre
na rua? Não tem casa?
- Tenho.
- Onde?
- Em Austin.
- Onde fica
isso? É longe daqui?
- Não é não.
Fica no Estado do Rio.
- Por que você
não vai pra casa?
Ele mordeu o
lábio inferior, calado um instante, mas acabou respondendo:
- Mamãe me
expulsou.
- Por quê?
Alguma você andou fazendo.
- Não fiz nada
não – reagiu ele, de súbito veemente: - Minha irmã é nervosa, quebrou o vidro
da televisão e disse que fui ei. Então minha mãe me expulsou.
- Quando foi
isso?
- Tem quase
três anos.
- Três anos? E
você nunca mais voltou?
- Voltei não.
- Como é que
você viveu esse tempo todo? Que é que você come?
- Peço resto de
comida.
- Pra que serve
esse papelão?
- Pra cobrir o
chão de dormir.
- Você tem
algum amigo?
- Não gosto de
amigo não, que amigo faz trapalhada e a gente é que acaba preso.
O nome dele era
Carlos Henrique.
- Volta pra
casa, Carlos Henrique.
E fiz uma
pequena pregação: mãe é sempre mãe, ela devia estar sentindo falta dele. Melhor
em casa que ficar por aí na rua, sem ter onde dormir. A mãe trabalhava em Nova
Iguaçu, ele me havia dito, devia viver da mão pra boca, mas ainda era pra ele a
melhor solução. Não tinha nem nunca teve pai.
- Você sabe ir
até lá?
- Sei. Tomo o
ônibus até a Central e lá pego o trem até Austin.
- Então vai mesmo,
heim?
Ele prometeu ir
assim que o dia clareasse. Para isso dei-lhe mais algum dinheiro e ele se
afastou, com sua colcha e seus pedaços de papelão, esgueirando-se pelos cantos
como um ratinho.
Não acredito que tenha ido. Certamente continuará
rolando por aí mesmo, mais dia menos dia transformado em pivete, se exercitando
na prática de pequenos furtos, em que, pelo jeito, ainda não se iniciou. E se
por acaso voltarmos a nos encontrar daqui a uns poucos anos, não me resta nem a
esperança de que me reconheça e não me mate – pois seguramente, e com justas
razões, já estará transformado em assaltante. (SABINO, 1995, p.31-34).
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